domingo, 24 de abril de 2016

87 - Sobre o processo de impeachment da Dilma




Respiração artificial: Sobre o impeachment e suas implicações



Parece haver um consenso sob os escombros da política brasileira, um acordo tácito abaixo da linha de fogo: todos reconhecem que a atmosfera está envenenada pelo ódio e por polaridades radicalizadas. Isso torna útil o serviço da perícia. Está na hora de recolher vestígios e mapear rastros, na expectativa de que nos levem ao mapa da mina.

Em nosso caso, a mina de ouro não está nos extremos furiosos e enrijecidos, mas nos canais submersos que os ligam e separam, como se fossem vasos minúsculos de comunicação, dando passagem a movimentos imperceptíveis de transição, nos quais se introduzem nuances e gradações. Essa cartografia dinâmica talvez possa, uma vez explorada, municiar os atores dispostos a construir pontes e parâmetros para a concertação que se imporá, em algum momento –ou não teremos país algum.

O GOLPE

A narrativa que descreve o impeachment da presidente Dilma nesses termos foi elaborada e difundida com múltiplas intenções, entre as quais a qualificação dos fatos é secundária:

1) acuar as oposições;

2) fortalecer a coesão dos segmentos que, na sociedade e no espaço político institucional, defendem o governo, elevando a temperatura das paixões envolvidas e intensificando sua capacidade de ação por contágio;

3) definir a presidente como vítima, sensibilizando setores de outro modo pouco engajados, quando não indiferentes;

4) traduzir a disputa interpretativa da linguagem do direito e da política para o vocabulário popular dos valores e sentimentos de justiça;

5) emitir um sinal claro, inteligível, que conclama à união de forças e circunscreve o âmbito semântico do confronto, estágio de rivalidade que tende a propulsionar a formação de identidade e sua massificação: o golpe é um meme epidêmico e explosivo;

6) nesse caso, como o enfrentamento é abordado da perspectiva da vítima, o repertório que se impõe como referência é aquele associado à ideia de resistência. Em outras palavras, o apelo bélico não soa agressivo, mas estritamente defensivo, o que torna a imagem da luta coerente com a noção de paz, convertendo a convocação para a guerra em apelo à paz. Por esse viés oblíquo, reúnem-se os impulsos ativos à aspiração passiva da harmonia, imagem irresistível;

7) remeter mensagens facilmente decodificáveis para o público internacional, constrangendo os operadores internos do processo;

8) viabilizar ao PT e seus aliados a retomada da iniciativa e a capacidade de mobilização social, de tal maneira que, opor-se à admissibilidade do impeachment (por não concordar com a tipificação de crimes de responsabilidade por analogia, por exemplo) passaria a significar adesão ao bloco no poder, apoio a suas bandeiras e acordo com o conjunto de suas versões sobre a realidade.

A instauração da polaridade golpistas versus resistentes limita as possibilidades políticas e fecha, em torno do próprio eixo, o circuito dos sentidos e das identidades.

Por mais que os agentes políticos reunidos em torno das palavras de ordem "não vai ter golpe" tentem se diferenciar, sua subsunção pelo polo governista é inevitável. A potência gravitacional da polaridade exclui, desautoriza e invisibiliza enunciados alternativos, que se constroem a partir de outras referências. São expelidas para as margens as afirmações daqueles atores cujos posicionamentos e pontos de vista escapam ao círculo de ferro dessa dramaturgia simplificadora e belicista.

COALIZÃO

A opção pela narrativa do golpe traz consigo implicações graves, que podem provocar consequências negativas para a própria coalizão que se formou ao redor da "resistência ao golpe".


Se impeachment é golpe, como os membros dessa aliança se relacionarão com os demais atores políticos, com as instituições –o STF, o MP, a Polícia Federal, o Congresso Nacional, as Forças Armadas? Como se relacionarão com a própria legalidade? Como atuarão para opor-se ao "golpe"? Tratando-se de golpe, o governo do vice-presidente careceria de qualquer vestígio de legitimidade, ou seja, só lhe restariam, para impor-se, a força bruta e a impostura, uma farsa midiática magnífica, capaz de hipnotizar as massas, que se ateriam a suas rotinas como zumbis.

Se o impeachment fosse "golpe de Estado", caberia às Forças Armadas agir em defesa da ordem constitucional. Caberia à presidente convocá-las, assim como decretar estado de sítio. Fosse golpe, os representantes da legalidade teriam de prender os golpistas, uma vez que estariam cometendo crime. O STF seria cúmplice do golpe? Que diálogo travar com atores políticos envolvidos no golpe?

E nas ruas, que limites os militantes estariam obrigados a respeitar, se a legalidade estivesse rompida? Qual o grau de violência aceitável ou necessária para defender a legalidade afrontada pelo impeachment?

Em síntese, a narrativa do golpe pode ter pernas curtas, golpeando-se a si mesma até murchar de vez, reduzida a muxoxos melancólicos e ressentidos. Ou pode, caso sobreviva aos dias que correm, atropelar o pacto constitucional, isolar as esquerdas, promover a violência e suscitar retrocessos impensáveis.

Golpe não é conceito, é categoria descritiva com efeitos práticos e rendimento político. Há narrativas contrárias ao impeachment perfeitamente plausíveis, mais afetas a disputas políticas civilizadas. Renunciar à retórica do golpe é um imperativo para que se restabeleçam condições de diálogo construtivo. Nem por isso seria preciso concordar com o impeachment.

Há narrativas alternativas favoráveis ao governo perfeitamente plausíveis. Por exemplo: ao encaminhar os procedimentos com vistas ao impedimento de Dilma Rousseff, logo após perder maioria na comissão de ética que o julgava, o presidente da Câmara não se vingou. Fez pior: cometeu ato passível de tipificação como "desvio de finalidade", uma vez que objetivava tornar seu autor imprescindível às oposições e gerar ambiente diversionista, no qual sua situação crítica tornar-se-ia secundária.

Além disso, o controle da condução dos trâmites para o impeachment equivaleria a valorizada moeda política, ampliando, portanto, suas condições de sobrevivência. Há mais: Eduardo Cunha é réu em processo criminal no Supremo, o que bastaria, legalmente, para retirá-lo do cargo, uma vez que ele seria o terceiro na linha de sucessão presidencial, agora na iminência de tornar-se o segundo.
A presença de Cunha na origem do processo o macula, dos pontos de vista ético e político, ainda que não prejudique a substância da acusação contra Dilma.

Considerando, então, finalmente, a substância das acusações, cuja admissibilidade foi julgada na Câmara, em 17 de abril, é razoável sustentar que não houve crime de responsabilidade e que, portanto, o caso deveria ter sido encerrado. É minha posição pessoal.

Ainda que ambas as interpretações sejam legítimas, isto é, ainda que ambas sejam passíveis de defesa argumentativa, a favor e contra a presidente, é notório que há espaço para dúvida, o que, por si só, deveria privilegiar o réu. O que está em jogo são 54 milhões de votos, é a soberania popular. O impeachment é medida extrema.

Observe-se que houve aqueles deputados que votaram não pela culpa da acusada, mas pela admissibilidade do processo. A decisão faz sentido, do ponto de vista lógico, mas é contraditória, na prática, porque termina por concorrer para o afastamento, posto que, no caso do impeachment, o processo do julgamento requer a perda provisória do cargo por até seis meses, enquanto o Senado decide.
É claro que o afastamento quase necessariamente implica já uma sentença, apesar de esse fato raramente destacado: para dar início ao processo no Senado basta a maioria simples (50% + 1 dos votos dos presentes), enquanto é necessária maioria qualificada (dois terços do conjunto dos senadores, presentes ou não) para que se afirme a decisão final.

Não seria impossível, portanto, que Dilma fosse derrotada na primeira votação, deixasse a Presidência, e a reconquistasse meses depois, absolvida na segunda e última votação. Em resumo: numa narrativa distinta daquela que se organiza em torno da figura do golpe de Estado, é possível condenar a injustiça da decisão da Câmara pela admissibilidade do processo de impeachment.

A injustiça manifestou-se nitidamente nos enunciados, tantas vezes patéticos, dos deputados, buscando um lugarzinho na história, ou no próximo governo. Suas excelências mencionaram menos as questões referidas na acusação e mais temas ausentes nos autos, como petrolão, desemprego, crise econômica, enfim, o desgoverno Dilma –quem negaria seu estelionato eleitoral, a profundidade e a extensão dos vínculos do PT e de antigos membros do governo ou da coligação governamental com a corrupção, e o desastre da famigerada "nova matriz econômica"?

Entretanto, mesmo sendo jurídico e político o julgamento, seu objeto, como determinou o STF, deveria estar limitado às acusações expostas nos autos.
A injustiça estende-se ainda mais: quando um deputado opta por ignorar os autos e contemplar os fatos, aqueles que estão no mundo mas não na peça acusatória, teria que contemplar todos os fatos pertinentes, e não apenas alguns, arbitrariamente escolhidos. A corrupção, por exemplo, não se esgota no PT ou no governo. Por que o silêncio sobre o envolvimento do PMDB e dos demais partidos, cujos representantes frequentam as denúncias da Lava Jato?

Por fim, o retrato do erro da Câmara era ela mesma, a maioria exultante com o resultado, mal escondendo seus próprios problemas. A imagem da injustiça eram tantos celebrando o triunfo, enquanto respondem a graves acusações ou estão sob investigação. A consequência previsível da votação do dia 17 de abril, em Brasília, é a divulgação da ideia falsa de que, afastando o PT e seu governo, o Brasil estaria livre da promiscuidade entre crime e política. Afinal, assumindo Michel Temer, passa a governar o país o partido de Eduardo Cunha e Renan Calheiros.

Na crítica à decisão pró-impeachment que recuse a narrativa do golpe há pontos de conexão, ou vasos comunicantes, com os defensores do impeachment, quando estes declaram apreço pela Constituição, reconhecem que as generalizações são impróprias e que a problemática da corrupção diz respeito a muitos outros partidos.

LAVA JATO

No campo discursivo que gira em torno do tema, os extremos estão bem demarcados: o ex-presidente Lula, em pronunciamento recente, afirmou que o juiz Sergio Moro seria o responsável último pelo desemprego. Essa é a versão economicista do polo contrário à Operação Lava Jato. Há a versão realista, cínica ou pragmática: corrupção sempre houve e haverá, é crônica, não se esgota em atores individuais e coletivos específicos, atravessa a política e a economia. Portanto, cumpre saciar a fome de justiça e vingança das massas, lançando um punhado de ovelhas sacrificiais à fogueira, e pôr um freio o mais rápido possível a essa sanha justiceira. Basta de espetáculo e de investigações que coloquem em risco o desenvolvimento do país.

Há uma terceira versão desse polo contrário à Lava Jato, a esquerdista: corrupção é conversa fiada moralista, udenista, pequeno- burguesa. A corrupção que verdadeiramente importa é sistêmica e intrínseca ao capitalismo. Só a revolução salva. Haveria, por esse motivo, o bom e o mau corrupto. O bom é aquele que transgrediu normas burguesas com a finalidade de conquistar ou manter-se no poder para servir à causa socialista.

Há também uma versão fraca dessa perspectiva: trazer a temática da corrupção para o centro da agenda corresponde a deslocar as questões populares efetivamente relevantes para segundo plano.

Há ainda a versão garantista, sem dúvida a mais qualificada e potente (endossada nem sempre de forma genuína por advogados dos réus): a Operação Lava Jato tem violado direitos e garantias individuais. A prisão arbitrária estaria sendo usada para constranger os acusados a optar pela delação premiada. Por outro lado, a operação tem sido seletiva, o que lhe confere um perfil político.

O Estado Maior da Lava Jato parece orientado por cálculos estratégicos, evitando enfrentar todos os personagens e setores ao mesmo tempo e procurando sedimentar seu apoio na sociedade e na mídia. Esta crítica desnudaria inspirações políticas subjacentes à imagem pública de imparcialidade. Ferida, a Lava Jato, em sua popularidade, os processos seriam fatiados, redistribuídos e a operação, gradualmente esvaziada, até ser definitivamente liquidada.

No extremo oposto situam-se os discursos de louvação refratários a qualquer ponderação crítica. Eles não raro correspondem a visões ingênuas que descontextualizam a problemática da corrupção, como se ela fosse a causa dos infortúnios brasileiros e dissesse respeito a qualidades ou perversões intrínsecas aos indivíduos.

Nesse quadro, o caminho da solução seria estritamente jurídico-penal, por um lado, e moral ou religioso, por outro. Os protagonistas da Lava Jato mereceriam mais do que admiração e reconhecimento, seriam vistos como novos messias e salvadores da pátria.

Os vasos comunicantes estão como potencial na construção dialógica de posições que admitam o valor histórico extraordinário da Lava Jato sem negar perigos e problemas, quando a necessidade de intervenção choca-se com garantias individuais.

A combinação explosiva que, mal compreendida e confrontada, pode conduzir ao fortalecimento desastroso da direita, dá-se entre a resposta racista e reacionária às conquistas sociais, econômicas e culturais recentes, proporcionadas pelos governos do PT –assentados na plataforma erigida pelos governos do PSDB–, por um lado, e, por outro, a repulsa à corrupção, entendida como a natureza mesma da política na democracia, e identificada exclusivamente com o PT, o qual se torna para esse segmento social sinônimo de esquerda.

Lembremo-nos de que o reconhecimento do colapso da representação constitui um legado das grandes manifestações de 2013, ensaio geral do novo protagonismo cidadão. Esse colapso pode ser lido em clave conservadora –como declaração de falência da democracia– ou progressista –como demanda por mais participação e controle por parte da sociedade.

INTOLERÂNCIA

A combinação referida –entre ênfase unilateral na corrupção, repulsa generalizada à política e rejeição racista dos avanços sociais– aponta para uma direção aterradora e carrega consigo a marca da intolerância, da recusa ao diálogo.

Entretanto, quando separamos os fios desse curto-circuito e focalizamos com olhar clínico o posicionamento diante da corrupção, encontramos aí a possibilidade de revalorização do espaço público, do bem público, da República.
Há lugar para conservadores e progressistas numa democracia, o que equivale a dizer: eles compartilham um solo comum e são capazes de negociar consensos sobre os pontos de dissenso para trabalhá-los, a partir de princípios e procedimentos concertados, consagrados na Constituição.

Os vasos comunicantes atravessam o campo e ligam versões atenuadas e complexificadas, com nuances e gradações, dos discursos em confronto quanto ao impeachment, à Lava Jato, ao lugar do PT e das esquerdas, às deficiências da representação política e à crise de legitimidade.

Não é verdade que o país esteja dividido, ainda que haja riscos crescentes de que a profecia se autorrealize. E ainda que haja franjas fascistas refratárias à civilidade.
Sob as múltiplas diferenças, se ajudarmos a baixar o tom da gritaria, encontraremos laços potenciais e referências políticas e morais a compartilhar.

O ambiente que mais contribuiria para a afirmação dos potenciais democráticos e para a reconstituição da linguagem comum seria a convocação de eleições gerais, em que a reforma política, finalmente, se deslocasse para o centro da agenda.

LUIZ EDUARDO SOARES, 62, é professor de ciência política da Uerj, foi secretário nacional de Segurança Pública em 2003 e é autor de "Rio de Janeiro: Histórias de Vida e Morte" (Companhia das Letras).

domingo, 3 de abril de 2016

86 - A CRISE BRASILEIRA

A CRISE BRASILEIRA

MARCUS ANDRÉ MELO in FOLHA DE SÃO PAULO (13/03/2016)  

Em seu livro "Passado Imperfeito: Um Olhar Crítico sobre a Intelectualidade Francesa no Pós-Guerra", Tony Judt chama a atenção para a irresponsabilidade moral da esquerda europeia quando os crimes de Stálin vieram à tona. A defesa do indefensável por gente como Sartre, Garaudy etc. teria levado à derrocada da intelligentsia francesa no resto do mundo porque ela teria perdido completamente a respeitabilidade.

Temo que algo semelhante possa acontecer com a intelligentsia brasileira –não a "tola", mas a "sabida". A inteligência "tola" –Sérgio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro– levou recentemente patadas no estilo "pastor chuta a santa", mas terá longa sobrevida. A "sabida" tem investido contra o império da lei e seus agentes –e não só no Brasil. Qual será seu lugar na história?

O Brasil enfrentaria uma tempestade perfeita, argumentei há mais de dois anos em uma palestra no National Endowment for Democracy (Washington, DC). Ela resultaria da raríssima combinação –um cisne negro– de escândalo ciclópico de corrupção, colapso econômico e um enfraquecimento inédito do Executivo.

Quando a Lava Jato foi deflagrada, a imagem a que recorri foi a de um "tsunami informacional". As pesquisas sobre a questão oferecem evidências robustas de que a influência da informação acerca da corrupção na opinião pública é condicional: é necessário que um limiar seja atingido para que ela se torne inteligível e crível. O tsunami tem poder de desvelar o "revólver fumegante" na corrupção. E mais: há um efeito interativo entre a economia e a informação sobre a corrupção que potencializa essa influência quando a primeira vai mal.

A intelligentsia "sabida" investe também contra o combate à corrupção. Mas, como mostram amplamente as pesquisas internacionais, a politização da corrupção não é uma questão de esquerda ou direita: ela é um movimento contra o incumbente. Se este é Vargas, o tema vai ser mobilizado contra ele; se for o regime militar, a denúncia volta-se para o regime. Ulysses Guimarães denunciava os "enxundiosos Faruks da corrupção" que estariam em toda parte: Capemi, Coroa Brastel etc.

No poder, Maluf tornou-se o símbolo da predação. A corrupção foi tema central da luta contra ditaduras, de Ferdinand Marcos a Anastasio Somoza; e, na França, do escândalo do canal do Panamá na 3ª República a Nicolas Sarkozy.

O argumento de que o combate à corrupção é uma invariante histórica –"repúblicas do Galeão" e seus "Ersatzs" e reencarnações– acionada quando emergem governos populares não resiste ao contrafactual mais elementar.

O segundo pé da tempestade perfeita –a debacle econômica– não é óbvio: por que um governo que havia dado continuidade ao tripé econômico anterior desviou de rota? Esse desvio resultou de uma "bolha política", conceito que tomo emprestado de "Political Bubbles: Financial Crisis and the Failure of American Democracy", de Nolan McCarty, Keith T. Poole e Howard Rosenthal.

A bolha é a exuberância política irracional, produto de uma combinação explosiva de crenças, instituições e interesses. "Por trás de toda bolha de mercado há uma bolha política", afirmam os autores. Da mesma maneira que alguns ativos encontram-se supervalorizados devido à exuberância irracional, na política uma escalada de crenças dá sustentação a políticas sem qualquer fundamento e leva ao colapso.

BONANÇA

A bolha política, no Brasil, foi engendrada por uma combinação de dois fatores: de um lado, a nova estrutura de incentivos produzida pela descoberta do pré-sal, que levou à maior capitalização de mercado da história do capitalismo, a da Petrobras, e à difusão da crença em uma bonança generalizada; e, de outro, a relegitimação de instrumentos de intervenção na economia nos países avançados, em virtude da crise de 2008.
O que foi temporário nessas economias tornou-se, aqui, permanente –mais ainda, foi perigosamente alavancado. A exuberância política irracional resultante levou à formação de uma aliança entre Estado e empresas –interesses– em escala inédita, ancorada em um discurso triunfalista que levou o BNDES a quadruplicar sua carteira.

Quando deu com os burros n'água, a perspectiva de repetição da reversão de políticas do presidente Lula levou o governo Dilma a praticar o maior estelionato já registrado em democracias. Mas não havia uma "Carta aos Brasileiros" antecipando a conversão ao mercado. E mais: a reversão ocorria em relação ao seu próprio governo, e não a um governo de coloração ideológica distinta, levando à lona a popularidade presidencial.

A nossa tempestade perfeita é produto de poucos choques (pré-sal, neointervencionismo) e numerosas opções por políticas erradas.

E as instituições políticas? Afirmar que nossa crise é um cisne negro equivale a dizer que a magnitude da crise não é explicável unicamente por algum atributo de nosso desenho institucional; antes, há um conjunto de fatores claramente institucionais a alimentar a crise. Que fatores são de um tipo e de outro?
Dizer que nossas instituições estão funcionando, mas que não produzirão soluções, é uma platitude. Decerto a crise não é como descreveria Juan Linz em seu estudo clássico sobre a instabilidade do presidencialismo: não há o confronto Executivo-Legislativo previsto por esse autor.

A presidente entregou não só os anéis mas também os dedos, em uma espécie de semipresidencialização informal. As instituições judiciais e de controle estão funcionando como antecipado pelos constituintes em 1988. Ao dotá-las de enormes prerrogativas, elas tornaram-se autônomas e robustas.

O Executivo também foi objeto de enorme delegação de poder, e os freios e contrapesos fortalecidos foram vistos como instrumentos que pudessem coibir o abuso de poder presidencial. Aí está o terceiro pé da tempestade: o presidencialismo precisa de um presidente para funcionar. Na ausência de um, haverá paralisia decisória em qualquer variante constitucional imaginável. Se o capital político do presidente é nulo e seu manejo da coalizão é desastroso, para dizer o mínimo, instala-se a crise.

Nunca houve na história um presidente cujo partido tivesse apenas 11% das cadeiras no Parlamento e que tivesse popularidade de um dígito. Mas o PT perdeu cadeiras porque se descolou do eleitorado. A intensidade do estelionato eleitoral e a corrupção revelada no país são inéditas do ponto de vista comparativo. Todavia muito pouco ou nada disso resulta do nosso desenho constitucional.

Por outro lado, há um conjunto de fatores –estes sim– de natureza institucional que alimentam a crise, mas não são sua causa imediata. Nunca houve um Legislativo com um número efetivo de partidos políticos tão elevado: um escore de 13,4 em 2014, engendrando a necessidade perene de construção de coalizões superdimensionadas. A fragmentação legislativa chegou ao número máximo matematicamente possível em 7 Estados brasileiros: neles, todos os parlamentares provêm de partidos diferentes. Isto é institucional e se deve, entre outras coisas, à magnitude brutal de nossos distritos eleitorais. Também o é a legislação sobre financiamento de campanhas.

A democracia brasileira está ameaçada quando a intelligentsia "sabida" se volta contra as instituições. E mais grave: quando o faz invocando uma noção de representação política simbólica.

Como demonstrou Hanna Pitkin, esse tipo de representação é a negação da "accountability". Um líder representa algo em virtude "do que é, e não do que faz". A responsabilização democrática se define pelo desempenho –"o atuar no interesse de"–, o que pressupõe o estabelecimento de um conjunto de ações desviantes que, se concretizadas, levariam o representante a ser punido pelo eleitor.

Em uma liderança simbólica, esse conjunto não é enumerável porque, por construção, quem é símbolo não pode deixar de sê-lo. Isso também vale para a chamada representação descritiva, na qual a boa representação é definida pela similitude entre representante e representado. O bom líder seria então aquele que detivesse os atributos do eleitor médio.

Essa noção de representação, como sublinha Pitkin, dispensaria eleições; bastaria uma amostra aleatória para a escolha do representante. E viola a "accountability" democrática: o "eleitor típico" pode simbolizar o eleitorado, mas não será um representante.

A representação é fundamentalmente performativa, fundada em uma delegação condicional. Pertence à mesma classe de enunciados antidemocráticos o argumento "sabido" que diz que um símbolo não pode ser preso; só a não culpabilidade pode legitimamente ser invocada nesse caso.

MARCUS ANDRÉ MELO é professor titular de ciência política da Universidade Federal de Pernambuco e foi professor visitante na universidade Yale e no MIT.


85 - O POSSÍVEL GOVERNO LIBERAL-PATRIMONIALISTA DE MICHEL TEMER

O POSSÍVEL GOVERNO LIBERAL-PATRIMONIALISTA DE MICHEL TEMER
CELSO ROCHA DE BARROS in FOLHA DE SÃO PAULO (03/04/2016)

Nos últimos meses, um importante debate teve lugar nas páginas da "Ilustríssima". O presidente do Ipea, Jessé Souza, deu uma entrevista a Marcelo Coelho em que criticou a instrumentalização do conceito de "patrimonialismo" no debate brasileiro.

Independentemente do significado do conceito em sua formulação original por Max Weber, entre nós o termo adquiriu o sentido geral de promiscuidade entre público e privado, sendo constantemente invocado em discussões sobre corrupção, apadrinhamento, e/ou captura do Estado por interesses particulares. Aceitaremos aqui o sentido consagrado pelo uso.

Para Souza, a centralidade da discussão sobre o patrimonialismo na tradição intelectual brasileira produziu a crença de que o problema principal do país está em deformidades do Estado, e não na desigualdade produzida na economia e na sociedade. A constante repetição da tese do patrimonialismo ajudaria a desviar atenção do problema da desigualdade.

Em resposta ao texto de Souza, o cientista político Marcus Melo propôs uma versão da história brasileira em que o patrimonialismo é revisitado a partir de autores recentes que enfatizam a importância das instituições para o desenvolvimento econômico (como Douglass North, Daron Acemoglu e James Robinson).

Para Melo, o problema seria o inverso do identificado por Souza: a ênfase brasileira em soluções centralizadas e estatizantes teria gerado uma ordem social excludente. Nossas instituições fechadas, acessíveis apenas a uma minoria, seriam facilmente capturadas por interesses particulares. Uma visão "iliberal", marcada pela santificação do Estado, estaria na origem do patrimonialismo.

O debate na "Ilustríssima" teve excelente "timing". A relação entre visões liberais e iliberais, entre mercado e patrimonialismo, deve se tornar um tema bastante atual se Dilma Rousseff for impedida nos próximos meses.

Afinal, os liberais brasileiros estão prestes a se aliar ao PMDB, um partido que, mesmo para os padrões brasileiros, é especialmente confuso sobre a divisão entre público e privado.

Se um acordo PSDB/PMDB levar Temer à Presidência, teremos uma aliança entre a direita liberal e a direita patrimonial, sob a liderança da última (o que a diferencia de PSDB/PFL).

Esse liberal-patrimonialismo, por meio de alguma transição confusa, tornará nossas instituições mais abertas e inclusivas, no sentido dos institucionalistas? Que preço os liberais precisarão pagar ao patrimonialismo para implementar seu programa? Quais as chances de uma retomada, nesse novo ambiente, da discussão da desigualdade defendida por Jessé Souza?

Enfim, se optarem, como parece que farão, por derrubar Dilma Rousseff, será hora de os liberais brasileiros relerem Sérgio Buarque de Holanda e Raymundo Faoro, dessa vez prestando atenção se a história agora não é sobre eles.

PROGRAMA

Em uma entrevista recente, o senador José Serra esboçou um programa para um futuro governo Temer. É uma visão otimista em que um governo de união nacional faz reformas de caráter liberal e entrega o país arrumado para quem vencer a eleição de 2018.

Se houver mesmo um governo Temer, torço para que se pareça com a visão proposta pelo senador José Serra. Torço, enfim, para que o que vou escrever agora soe um dia como uma advertência desnecessária. Mas acho muito difícil que seja o caso. Acredito que o governo Temer será uma tentativa de comprar a absolvição de políticos da direita acusados na Lava Jato entregando reformas liberais à elite econômica.

Não se sabe se um acordo para diminuir o ritmo das investigações da Lava Jato será bem-sucedido, mas é certo que será tentado. Pelo que tem vazado, as delações atingirão todo o espectro político. Quando a catarse do impeachment estiver consumada, a tentação do "acordão" dentro do sistema político será fortíssima. E, embora não pareça possível que o mandato de Dilma seja poupado, não estranhem se ao menos alguns petistas entrarem no acordo.

Talvez não seja possível interromper a atuação do Ministério Público, da Polícia Federal e de outros órgãos fiscalizadores. Bem mais provável é que diminua a pressão da mídia e das manifestações que até agora se concentraram em derrubar Dilma Rousseff. Que voltemos a dar algum benefício da dúvida aos acusados, ou que tenhamos mais paciência com o desenrolar dos processos.

E, é claro, o quadro político pode favorecer o acordo mudando os incentivos dos delatores. Se, para se livrar da cadeia, for suficiente entregar petistas e outros já enrolados, os empreiteiros podem optar por fazê-lo, mantendo assim boas relações com o novo governo.

Se estivermos precavidos o suficiente contra o acordo, talvez possamos evitá-lo. As passeatas e panelaços podem continuar, agora reforçados pelos militantes de esquerda. As edições especiais das revistas e os telejornais com duração estendida podem persistir. A mobilização contra os corruptos pode continuar, agora contra o outro lado do espectro político.

Não acho que isso vá acontecer.

Depois de um ano e meio de crise política, alguma estabilidade econômica parecerá um enorme ganho para parte importante da população brasileira. Acredito que as instituições continuarão fazendo sua parte, mas não tenho a mesma confiança de que os segmentos sociais e os formadores de opinião que terão derrubado Dilma o façam. E, quando a esquerda tentar fazê-lo, seus gestos serão desqualificados como atitude de mau perdedor.

E mais –quem tentar denunciar o acordão vai ter que administrar um risco muito incômodo: o de que uma desmoralização completa de todo o sistema político favoreça aventureiros e salvadores da pátria.
Enfim, embora torça para estar errado, acho boas as chances de os corruptos conservadores conseguirem o que os corruptos petistas não conseguiram –que a Lava Jato seja desacelerada.

As instituições continuarão funcionando, mas não poderão mais contar com o mesmo esforço de opinião pública para enfrentar interesses poderosos, agora muito mais compactos do que quando a esquerda era governo.

Em princípio, o impedimento de um presidente pode ser um passo em direção a uma sociedade com instituições mais sólidas e universalistas, em que ninguém esteja acima da lei. Mas, em caso de uma crise do sistema político como um todo, há um risco real de que o impedimento seja só um lance dentro de uma estratégia geral de acomodação.

Nesse caso, há o risco de o sistema se tornar mais fechado, se, como pode acontecer no Brasil, a parte excluída da acomodação representar segmentos que não dispõem de outra possibilidade de influir nas decisões governamentais.

REFORMAS

Se o governo Temer conseguir fechar um acordo de acomodação do sistema político, há uma chance razoável de conseguir realizar com sucesso reformas liberais. A esquerda deve sair fraca do processo de impeachment e deve levar um tempo para que ela se reorganize (embora as manifestações recentes estejam ajudando a evitar sua dispersão). As reformas que dependerem sobretudo de superar as objeções da esquerda (como a da Previdência) devem se tornar mais fáceis.

Acho mais difícil que progridam medidas liberais que afetem a elite. Mudanças que de fato eliminem privilégios podem acabar esmagadas por lobbies como o da Fiesp, que tantas novas matrizes econômicas inspirou para depois criticar. Os anúncios pagos pelo empresariado a favor do impeachment foram claras tentativas de comprar um lugar à mesa no próximo governo. Deve dar certo.

Sempre é possível um "estelionato nem sequer eleitoral" de Temer. Isto é, que Temer abandone a agenda liberal assim que ela lhe tiver garantido a Presidência. Nesse caso, "Uma Ponte para o Futuro" seria para a elite econômica e seus formadores de opinião o que o Plano Cruzado foi para o resto da população brasileira em 1986: uma ponte levando o PMDB para o poder, e só.

Nesse cenário, assim que Temer assumisse o governo, algumas medidas liberais seriam anunciadas, tornadas aceitáveis pela possibilidade de jogar a culpa de tudo na herança petista (até a desaceleração chinesa deve entrar nessa). Se as coisas começarem a dar certo, o PMDB pode governar pensando na eleição de 2018. Nesse caso, reformas dolorosas se tornarão menos prováveis.

Mas acho que, ao menos enquanto a esquerda continuar desorganizada, e supondo que consiga se consolidar politicamente, o governo Temer deve tentar aplicar o programa liberal, por não poder se dar ao luxo de perder o apoio da elite econômica e porque, enfim, algumas das medidas do ajuste são imposições das circunstâncias.

Nesse caso, as instituições brasileiras talvez se tornem mais inclusivas na economia, com um mercado mais dinâmico e menos protegido pela ligação com o Estado. Mas isso terá sido possível por uma notável redução da inclusividade da esfera política, por um governo baseado em um acordo entre elites aproveitando a chance de fazer suas reformas quando as reivindicações dos mais pobres deixaram de ter um representante na mesa de negociações.

Não parece promissor para o desenvolvimento futuro das instituições brasileiras. E, a propósito, não sei quanto uma aliança assim, caso se torne estável, manteria seu compromisso com soluções universalistas.

REDISTRIBUIÇÃO

Em um cenário PT vs. PSDB, seria possível conceber um acordo em que medidas liberais fossem trocadas por medidas redistributivas. O Brasil, afinal, precisa tanto de mais liberalização quanto de mais redistribuição. Mas isso deve ser mais difícil sem a esquerda na conversa.

E o jogo que estamos jogando há um ano e meio não favorece a discussão sobre desigualdade e pobreza. A falta de preocupação com os brasileiros pobres foi um traço constante da política brasileira em 2015-2016. Quando a disputa política deixou de ser eleitoral, ninguém mais precisou de pobres para nada, e eles simplesmente deixaram de ser assunto.

Quando o PMDB publicou seu manifesto liberal "Uma Ponte Para o Futuro", havia um documento sobre política social que o acompanhava. A diferença de sofisticação entre os dois textos era gritante. O texto sobre política econômica tratava de uma ampla variedade de temas e espelhava bem o debate entre os melhores economistas liberais. O texto sobre política social pode ser resumido em 1) escola é bom, 2) já crime não, crime é ruim e 3) citem um Amartya Sen no final para parecer que deu trabalho fazer isso aqui. A diferença mostrava claramente que público foi importante conquistar em 2015. Não foram os pobres.

Há alguns meses, o PMDB anunciou que divulgaria um "Plano Temer 2" (aceitando que "Uma Ponte para o Futuro" tenha sido o "Plano Temer 1"), no qual a política social será o assunto principal. O que já vazou do plano pode ou não ser necessário, mas não é popular: fala-se de aumentar a eficiência do gasto social, o que é louvável, mas não deve inflamar as massas.

Talvez o PMDB esteja demorando para divulgar o "Plano Temer 2" por estar excessivamente ocupado com a implementação do "Plano Temer Zero", derrubar Dilma Rousseff. Mas o mais provável é que simplesmente não lhe seja necessário conseguir apoio popular no momento.

Há diferenças entre os manifestantes a favor e contra o impeachment, mas nenhum dos dois grupos é vulnerável a ponto de depender de políticas sociais. Nos arranjos entre a elite econômica e os deputados que decidirão a sorte de Dilma no Congresso, o assunto é ainda menos relevante. O impeachment será decidido sem a participação dos brasileiros pobres, que só devem voltar a ser assunto quando 2018 se aproximar.
Aumentar a eficiência dos programas sociais pode ser necessário, mas isso não será feito dentro de uma negociação com os prováveis perdedores do processo.

É comum ouvir que as reformas liberais finamente se tornaram um consenso. Eu mesmo concordo com várias. Mas não é possível deixar de notar que o consenso se deve ao fato de que há muito menos gente na conversa.

ACORDO

Em 1994, Fernando Henrique Cardoso fechou um acordo entre PFL e PSDB que tinha algumas semelhanças com o atual. Lendo o primeiro tomo dos diários do ex-presidente, recém-publicado, tem-se a impressão de que FHC esperava que suas reformas acabassem por solapar as bases do poder de seus aliados fisiológicos. E, em certa medida, isso aconteceu: FHC tornou as instituições brasileiras mais inclusivas e mais abertas, e não só na economia.

A aliança de 94 era comandada por um PSDB repleto de lideranças que se opuseram à ditadura, baseada em um enorme sucesso econômico –o Plano Real– e historicamente situada em um momento de ascensão do capitalismo global, em que o discurso modernizador liberal tinha enorme apelo. A atual é liderada por um PMDB cuja direção pode ser presa a qualquer momento, não tem nenhum programa simpático para implementar e enfrentará uma situação internacional muito adversa.

Enfim, se houver um governo Temer, minha expectativa quanto a ele será baixa. Acho que o novo governo tentará patrocinar um acordo de amenização da Lava Jato.

Se não o conseguir, não sei se conseguiria implementar sua agenda econômica, pois seria ainda mais vulnerável às investigações do que o governo Dilma. Se o conseguisse, e se implementasse as reformas liberais, isso talvez fosse bom para a eficiência econômica, mas teria um custo social que não acho que seria compensado por políticas públicas. É um pouco deprimente que esse seja o melhor cenário.

CATARSE

Enquanto escrevo, o impeachment é considerado altamente provável pelos analistas, mas não é uma certeza. Embora um período Dilma que vá até o fim mereça uma análise em separado, é preciso ressaltar que muita coisa dita até aqui provavelmente seria verdade sobre o governo sobrevivente.

Um acordo anti-Lava Jato seria mais difícil sem a catarse do impeachment, mas não seria impossível. E talvez fosse possível sobreviver sem ele, de crise em crise.

A baixa qualidade dos quadros recrutados nos pequenos partidos para garantir a vitória contra o impeachment provavelmente seria abissal. E o programa econômico seria o liberal, com uma ou outra moderação. O risco de perder vozes no sistema político seria menor, mas o ganho de eficiência econômica também.

Acho que um governo Temer, mesmo no melhor cenário, será pior do que um governo Dilma teria sido se a oposição não tivesse começado a derrubá-la no primeiro dia de seu segundo mandato. Mas não sei se essa vantagem já não se perdeu com a radicalização do último ano e meio, que reforçou a necessidade de entusiasmar as bases. Sem a radicalização, aliás, Temer também seria capaz de fazer um governo bem melhor. Se a guerra do último ano teve alguma vantagem, não é fácil enxergá-la nos dados.

Mas talvez essa já seja a discussão de ontem.

CONCLUINDO

A aliança entre a direita liberal e a direita patrimonial pode produzir algum progresso na economia brasileira, tornando-a mais sujeita a regras universalistas e menos dependente de favores estatais. Mas é provável que isso seja feito aproveitando o momento em que os mais pobres estavam sem representantes na negociação, ou pela crise do PT, ou porque o poder terá sido conquistado sem depender do voto popular.

Além disso, embora o impeachment possa ser visto como uma extensão de regras universalistas aos poderosos, nas circunstâncias atuais ele pode ser a catarse que possibilitará acordos que reduzam a transparência do sistema. Enfim, podemos nos tornar mais produtivos, mas deve haver um custo razoável para a representatividade de nosso sistema político.

A melhor esperança do país é que, em algum grau, a Lava Jato continue funcionando e mantenha a aliança PSDB/PMDB suficientemente sob terror para que tudo no governo Temer seja transitório, e o jogo comece de novo na eleição de 2018, com o ajuste econômico já feito.

Se, como acredito, não for mais possível contar com boa parte da direita brasileira para apoiar a Lava Jato depois do impeachment, restará à esquerda pegar a bandeira no chão e levar a luta contra o patrimonialismo brasileiro até o fim. E, aos que acham que a bandeira não é de esquerda, lembro que Sérgio Buarque de Holanda foi fundador do PT e que Raymundo Faoro, depois de destacada atuação contra a ditadura, passou os últimos anos de sua vida escrevendo para a "Carta Capital".

CELSO ROCHA DE BARROS, 43, colunista da Folha, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford.